A liturgia diária, na sua sabedoria milenar, frequentemente nos confronta com a realidade da nossa própria existência de forma crua e sem paliativos. O Evangelho proposto (São Lucas 12, 54-59) é um exemplo primoroso dessa pedagogia divina. Nele, Nosso Senhor Jesus Cristo, após admoestar a multidão por saber interpretar o tempo meteorológico mas não o “tempo presente”, encerra com uma parábola jurídica aparentemente simples: a necessidade de se reconciliar com o adversário a caminho do tribunal. Caso contrário, adverte o Mestre, o juiz o entregará ao guarda, e este o lançará “na cadeia”, de onde “não sairás, enquanto não pagares o último centavo” (São Lucas 12, 59).
Esta passagem, ecoando através dos séculos, levanta uma questão teológica fundamental que toca diretamente os Novíssimos (as últimas coisas): que “prisão” é essa da qual se pode, eventualmente, sair após o pagamento de uma dívida? Se a Sagrada Escritura e a Tradição são claras sobre a eternidade do Inferno, e o Céu é um estado de perfeição absoluta, a lógica da fé, iluminada pelos Doutores da Igreja, aponta para uma única e necessária conclusão: o Purgatório.
Este artigo analisará, sob a ótica da filosofia realista e da teologia tomista, como esta passagem evangélica fundamenta a doutrina do Purgatório e, mais importante, por que ela é um chamado urgente à conversão agora, enquanto ainda estamos “no caminho”.
A Urgência da Conversão: “Saber Interpretar o Tempo Presente”
Antes de analisar a “prisão”, é imperativo entender o “caminho”. Cristo critica a multidão por sua hipocrisia: “Sabeis interpretar o aspecto da terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente?” (São Lucas 12, 56). O “tempo presente” (ho kairós hoûtos) não é apenas o momento histórico da vinda do Messias, mas, para cada um de nós, é o tempo da nossa vida terrena. É o único tempo que temos para a metanoia, a mudança radical de mentalidade e coração.
O “adversário” (São Mateus 5, 25 usa o termo antídikos) com quem devemos nos reconciliar “enquanto estais a caminho” é, como sugeriu Santo Agostinho, a própria Palavra de Deus ou a nossa consciência iluminada pela Lei Divina. Este “adversário” nos acusa, com justiça, de nossas falhas, de nossas transgressões contra a ordem estabelecida pelo Criador.
A vida terrena é o “caminho” para o tribunal. A morte é o fim deste caminho e o início do julgamento. Portanto, a exortação de Cristo é um apelo à urgência. Não podemos procrastinar nossa conversão, nossas obras de penitência e nossa reconciliação com Deus e com o próximo. Como bem sabemos,
A Prisão e o “Último Centavo”: Uma Lógica Inescapável
A segunda parte da parábola (v. 58-59) é onde a doutrina do Purgatório se apresenta com clareza lógica. Vamos analisar os elementos:
O Juiz: É Cristo, o Justo Juiz, no momento do Juízo Particular, que ocorre imediatamente após a morte de cada indivíduo.
A Prisão (Cadeia): Um lugar de custódia e punição.
A Dívida: O “último centavo” (lepton, a menor moeda da época).
A exegese católica, baseada na Tradição e no magistério, nos força a perguntar: que prisão é esta?
Não pode ser o Inferno: O Inferno, por definição dogmática, é eterno. É um estado de autoexclusão definitiva da comunhão com Deus. Dele, não se sai. A dívida do pecado mortal não perdoado é impagável. A parábola de Cristo, no entanto, é condicional: “não sairás, enquanto não pagares”. A palavra “enquanto” (héos) implica que, uma vez paga a dívida, a libertação ocorre.
Não pode ser o Céu: O Céu é o estado de beatitude perfeita. Como afirma o Apocalipse, “nela [na Jerusalém Celeste] jamais entrará algo de impuro” (Ap 21, 27). Se há uma “dívida” a ser paga, por menor que seja (“o último centavo”), a alma ainda não está em estado de perfeição e pureza total para contemplar a Deus face a face.
Se a prisão não é eterna (excluindo o Inferno) e não é um lugar de beatitude (excluindo o Céu), a razão iluminada pela fé nos leva a um estado intermediário de purificação. Este estado, que a Igreja chama de Purgatório, é precisamente a “prisão” onde a justiça divina é satisfeita pela purificação das “penas temporais” devidas pelos pecados já perdoados.
A Doutrina dos Novíssimos e a Lógica Tomista da Pena Temporal
Para compreender plenamente o Purgatório, devemos inseri-lo no contexto dos
É aqui que a clareza de Santo Tomás de Aquino se torna indispensável. O Doutor Angélico, cuja lógica nos ajuda a entender
Todo pecado, mesmo o venial, acarreta duas coisas:
A Culpa (Culpa): A ofensa a Deus e a ruptura (no caso do pecado mortal) da comunhão com Ele.
A Pena (Poena): A consequência dessa desordem. A pena é dividida em eterna (a privação de Deus, o Inferno, devida ao pecado mortal) e temporal (a desordem infligida na alma e na criação, que exige reparação).
O Sacramento da Confissão, pela misericórdia de Deus, perdoa a culpa e a pena eterna. Contudo, a pena temporal permanece. É o “estrago” que o pecado causou. Pensemos num prego retirado da madeira: o prego (a culpa) se foi, mas o buraco (a pena temporal) permanece.
Esta pena temporal, esta “dívida”, deve ser paga. Podemos pagá-la nesta vida (o “caminho”) através de orações, penitências, obras de caridade e indulgências. Se, no entanto, chegarmos ao fim do “caminho” (a morte) e ainda houver “centavos” a pagar, a Justiça Divina exige que essa dívida seja quitada antes da entrada na glória.
Essa quitação post-mortem é o Purgatório.
O Purgatório: Fogo de Justiça e Fogo de Amor
Muitos têm uma visão distorcida do Purgatório, imaginando-o como um “Inferno light” ou uma vingança divina. Trata-se de um erro grave. O Purgatório é, antes de tudo, uma obra da Misericórdia Divina. É a última etapa da santificação.
A alma no Purgatório tem a certeza absoluta de sua salvação. Ela ama a Deus e sabe que irá para
Esse sofrimento, no entanto, é purificador. Como ensina Santa Catarina de Gênova em seu “Tratado sobre o Purgatório”, é o fogo do Amor Divino que purifica a alma. Deus não “envia” a alma ao Purgatório; a própria alma, ao se ver diante da Santidade Absoluta de Deus e reconhecer suas próprias impurezas (“o último centavo”), mergulha nesse estado purificador, pois não suportaria estar diante de Deus sem a pureza total.
Santo Agostinho e o “Fogo Purificador”
Embora Santo Agostinho, ao comentar São Lucas 12, tenha focado primariamente na urgência da conversão nesta vida (como vimos), ele foi um dos Doutores da Igreja que mais desenvolveu a noção de um “fogo purificador” (ignis purgatorius) após a morte. Ele entendeu que, para aqueles que “constroem sobre o fundamento de Cristo, mas com madeira, feno ou palha” (1 Cor 3, 12-15), será necessário “passar pelo fogo” para ser salvo. A passagem de São Lucas 12, com sua lógica de pagamento de dívida, serviu como um dos pilares bíblicos para essa doutrina que Santo Tomás de Aquino, séculos depois, sistematizaria com perfeição.
Conclusão: Viver Agora com os Olhos na Eternidade
O Evangelho de hoje não é uma ameaça, mas um ato de realismo e misericórdia. Ao nos alertar sobre a “prisão do último centavo”, Cristo não quer nos aterrorizar, mas nos despertar. Ele nos lembra que este “caminho” é curto e que o Juízo é certo.
A doutrina do Purgatório, longe de ser uma invenção medieval, é uma necessidade lógica da Justiça e da Misericórdia de Deus. Ela nos assegura que nada de impuro entrará no Céu e, ao mesmo tempo, que a Misericórdia oferece um caminho de purificação final para aqueles que morreram na amizade de Deus.
A lição, portanto, é a mesma de Santo Agostinho e Santo Tomás: devemos usar o “tempo presente” com sabedoria. Devemos nos reconciliar com o nosso “adversário” — a Verdade — agora. Que busquemos pagar nossas dívidas temporais nesta vida, através de uma vida de oração, sacramentos e caridade ativa, para que, ao chegarmos ao fim do caminho, o Juiz nos encontre sem dívidas e possamos, pela Sua graça, entrar diretamente na festa eterna, sem a necessidade daquela prisão purificadora.


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