A humildade não é uma virtude opcional para o cristão; é a própria porta de entrada para o Reino dos Céus. Esta verdade, radicalmente contrária à lógica do mundo moderno, é o cerne do ensinamento de Jesus no Evangelho de Mateus (Mt 18, 1-5.10). Quando os discípulos, imbuídos de uma ambição terrena, perguntaram: “Quem é o maior no Reino dos Céus?”, Cristo respondeu com um ato que é o mais puro ensinamento de filosofia e teologia: chamou uma criança e a colocou no centro. Para se tornar grande aos olhos de Deus, é preciso, paradoxalmente, “fazer-se como criança”. Longe de ser um chamado ao infantilismo ou à imaturidade, esta passagem é uma profunda lição sobre o estado espiritual da alma, que a Filosofia Tomista e o pensamento de Santo Agostinho souberam decifrar com maestria. Este artigo desvenda por que a humildade da criança, segundo o pensamento dos Doutores da Igreja, é a virtude mais necessária para o peregrino em busca da salvação.
A Soberba Como o Pecado Original da Alma
Para compreender a exortação de Jesus, é fundamental entender o que Ele estava combatendo: a soberba. Os discípulos, mesmo após tanto tempo com o Mestre, ainda nutriam a mentalidade do mundo, buscando status e honra. Santo Agostinho de Hipona via a soberba (superbia) não apenas como um pecado, mas como o próprio princípio do mal. Ele argumentava que o pecado original de Adão e o de Lúcifer não foram atos de sensualidade ou cobiça material, mas a recusa em aceitar a posição de criatura, tentando se autoproclamar deuses.
A soberba é, portanto, a autossuficiência espiritual e intelectual que nos impede de aceitar a graça. O homem soberbo confia em sua própria força, seu intelecto e seus méritos, fechando-se à verdade de que é totalmente dependente de Deus.
O Antídoto Agostiniano: A Humildade Radical
Agostinho enxergava a criança como o antídoto perfeito para essa doença da alma. Uma criança não tem pretensões de ser a maior, não se gaba de seus feitos e, crucialmente, vive em um estado de simplicidade e dependência absoluta.
"Tornar-se como criança," segundo Agostinho, é abandonar a presunção do "eu" para que o espaço esvaziado possa ser preenchido pela graça divina. É um ato de rendição onde o homem reconhece a sua pequenez ontológica diante da infinita majestade do Criador.
A criança, em sua vulnerabilidade, não confia em suas próprias forças, mas confia cegamente no pai. Esta é a essência da fé humilde: uma confiança filial irrestrita em Deus Pai, reconhecendo que sem Ele, nada podemos fazer de verdadeiramente bom e duradouro.
São Tomás de Aquino: A Infância Espiritual Contra as Paixões Corrompidas
São Tomás de Aquino, com sua precisão escolástica, não apenas endossa a visão agostiniana, mas a aprofunda, analisando as qualidades da criança que devem ser imitadas em um estado espiritual, e não cronológico. O Doutor Angélico deixa claro que Jesus não está promovendo a imaturidade, mas sim uma “infância espiritual”.
Em sua análise das virtudes, Tomás de Aquino argumenta que a criança é um modelo porque sua alma, por causa da menor intensidade do uso da razão e da pouca experiência de vida, ainda não está profundamente corrompida pelas grandes paixões desordenadas que afligem o adulto.
Ele elenca três vícios principais que a “criança espiritual” evita:
1. A Soberba (Busca de Honras)
O adulto soberbo busca dominar, ser o primeiro, cobiçar posições de honra e vanglória. A criança, em sua esfera natural, não está motivada por tais ambições. Ela não se preocupa com o status social.
2. A Inveja (Aflição pelo Bem Alheio)
A inveja é um vício destrutivo que nos entristece pelo bem que o outro possui. O coração infantil, mesmo que momentaneamente frustrado, não se atormenta com o sucesso alheio com a mesma intensidade e malícia que a alma adulta corrompida.
3. A Ira (Planejamento de Vingança)
A criança pode se zangar, mas sua raiva é passageira. Ela não planeja vingança, não guarda rancores duradouros e não cultiva a malícia no coração. Essa simplicidade de coração é vital, pois a malícia e o ressentimento fecham a alma à caridade e ao perdão, essenciais para o Reino.
Para Tomás, a humildade é a virtude fundamental que modera e refreia a alma da elevação desordenada para as coisas grandes. É o alicerce de todas as outras virtudes, pois nos coloca no nosso devido lugar: abaixo de Deus e em fraternidade com o próximo. A criança vive essa verdade naturalmente. O adulto precisa readquirir essa perspectiva humilde através de um esforço da vontade iluminado pela graça.
A Inversão da Lógica no Reino de Deus
O ensinamento do Evangelho, apoiado pelo rigor de Aquino e pela paixão de Agostinho, resume-se na inversão da lógica do mundo.
No mundo, a grandeza é medida pela riqueza, pelo poder e pelo domínio. No Reino dos Céus, a grandeza é medida pela pequenez voluntária, pela dependência em Deus e pela simplicidade de coração.
Esta é a essência do caminho espiritual: o homem que se eleva por si mesmo é rebaixado; aquele que se humilha, é exaltado. Quando Jesus afirma: “Quem, pois, se fizer pequeno como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus” (Mt 18, 4), Ele está estabelecendo a regra fundamental para a vida espiritual.
Não é ser ignorante; é ser ensinável. Não é ser irresponsável; é ser dependente de Deus. Não é ser passivo; é ser livre das paixões que buscam dominar.
A humildade da criança é a disposição interior que nos permite reconhecer a própria miséria e, assim, abrir a porta para a Misericórdia de Deus.
Conclusão: Busque a Humildade para Vencer a Soberba
O chamado de Jesus para nos tornarmos como crianças é o convite mais radical para a santidade. Significa um despojamento constante da soberba, um combate diário contra a autossuficiência e a malícia, e o cultivo de uma confiança inabalável em Deus Pai.
Os Santos Anjos da Guarda, cuja memória celebramos, são também exemplos dessa obediência e humildade: eles aceitam a missão de servir e guiar os homens, reconhecendo a autoridade de Deus em cada passo.
Se a soberba é o vício que nos afasta de Deus e nos faz buscar o topo das hierarquias mundanas, a humildade é a virtude que nos coloca de joelhos, não em derrota, mas em um ato de máxima verdade, que nos qualifica para sermos grandes no único Reino que importa.
Que possamos, a cada dia, imitar a simplicidade e a dependência da criança, para que, esvaziados de nós mesmos, possamos ser plenificados pela graça de Deus e encontrar o nosso lugar entre os maiores no Reino dos Céus.
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