A Notícia: O Colapso da Dignidade no Presídio da Papuda
Uma recente reportagem do jornal Folha de S. Paulo lança uma luz crua e perturbadora sobre a realidade do Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal. Segundo o veículo, a ala destinada aos detentos idosos é a mais superlotada da unidade, um ambiente onde a vulnerabilidade da idade se encontra com a brutalidade da superlotação. Como se não bastasse, o presídio enfrenta graves problemas com o fornecimento de alimentos, com relatos de comida estragada sendo servida aos presos. Esta notícia não é apenas um relatório administrativo sobre falhas logísticas; é o sintoma de uma profunda enfermidade na alma da justiça brasileira. Diante deste quadro desolador, somos impelidos a buscar uma sabedoria que transcenda o debate público passageiro. O que diria sobre isso o Doutor Angélico, Santo Tomás de Aquino, cuja filosofia sobre justiça, lei e dignidade humana moldou o pensamento ocidental?
A Justiça Segundo Santo Tomás: Para Além da Punição, a Ordenação para o Bem
Para compreendermos a análise tomista, é crucial abandonar a noção moderna e frequentemente empobrecida da justiça como mera retribuição punitiva. Para Santo Tomás, a justiça é a virtude cardeal que consiste na "constante e perpétua vontade de dar a cada um o que é seu por direito" (Summa Theologiae, II-II, q. 58, a. 1). Este "direito" não se refere apenas à pena devida por um crime, mas a tudo o que é devido a uma pessoa em razão de sua própria natureza.
Mesmo um criminoso, que por seus atos se tornou devedor à sociedade, não perde a sua humanidade. Ele ainda é uma criatura racional, feita à imagem e semelhança de Deus (imago Dei). Portanto, o que lhe é devido, antes de mais nada, é um tratamento que respeite essa dignidade intrínseca. Negar-lhe condições mínimas de sobrevivência, como alimentação adequada e um espaço que não atente contra sua saúde e integridade física, é praticar uma injustiça fundamental. O Estado, ao assumir a custódia de um indivíduo, torna-se o garantidor de seus direitos mais básicos, e falhar nisso é uma perversão do seu papel.
A Finalidade Medicinal da Pena e a Contradição da Papuda
Na filosofia tomista, a pena (poena) possui múltiplas finalidades, mas sua principal função é medicinal e corretiva. Ela visa, primariamente, a restaurar a ordem da justiça que foi violada pelo delito e, na medida do possível, a emendar a alma do delinquente, conduzindo-o de volta à virtude. A pena deve ser um remédio amargo, não um veneno.
As condições descritas na Papuda operam na contramão dessa lógica. Um ambiente superlotado, insalubre, onde os mais velhos são os mais afetados e a comida é imprópria para o consumo, não tem qualquer potencial corretivo. Pelo contrário, é um ambiente que degrada, humilha e revolta. Ele não cura a desordem moral do indivíduo, mas o submerge em uma desordem física e psicológica ainda maior. Santo Tomás veria isso não como a aplicação da justiça, mas como a imposição de uma crueldade que se opõe tanto à virtude da justiça quanto à da caridade. É uma violência que não restaura ordem alguma, apenas multiplica o mal. Como explicamos em nosso artigo sobre a
A Violação do Bem Comum e a Responsabilidade do Governante
O conceito de Bem Comum (Bonum Commune) é o pilar da filosofia política de Santo Tomás. O propósito de toda lei e de todo governo é a promoção do bem de toda a comunidade, e não apenas de uma parte dela. O Bem Comum não é a simples soma dos bens individuais, mas a paz e a ordem justas que permitem a todos os membros da sociedade florescerem.
Um sistema prisional que opera nas condições da Papuda é um ataque direto ao Bem Comum. Primeiro, porque ele falha em sua função de reformar os indivíduos, devolvendo-os à sociedade piores do que entraram, o que representa um perigo para a própria comunidade. Segundo, e mais profundamente, porque uma sociedade que tolera a degradação sistemática de uma parte de sua população – mesmo a parte culpada – corrompe sua própria fundação moral. A justiça de uma nação se mede pela forma como trata os seus membros mais vulneráveis, e os prisioneiros, especialmente os idosos, estão entre os mais desamparados.
Para o Doutor Angélico, o governante tem o dever gravíssimo de zelar pela justiça e pelo bem-estar de todos os súditos, incluindo aqueles sob sua custódia. A negligência que leva à superlotação e à comida estragada não é um mero problema administrativo; é uma falha moral da autoridade política, uma omissão culposa no dever de governar para o Bem Comum, como detalhamos em nosso estudo sobre
Conclusão: Um Chamado à Razão e à Verdadeira Justiça
Santo Tomás de Aquino não veria a situação da Papuda com o cinismo ou a indiferença que tantas vezes marcam o debate contemporâneo. Ele a veria com a clareza de uma inteligência ordenada pela verdade e com a compaixão de um coração ordenado pela caridade.
Sua análise seria um diagnóstico severo: o que acontece ali é uma falha categórica da virtude da justiça. É a redução da pena a uma mera vingança estatal desordenada, que viola a dignidade da pessoa humana, contradiz a finalidade medicinal da punição e corrompe o Bem Comum.
O chamado do Aquinate seria, portanto, um chamado à razão e à ação. Primeiro, uma ação imediata para remediar as condições materiais desumanas, pois a justiça exige que se dê a cada um o que lhe é devido, e a vida e a saúde são devidas a todos. Segundo, um chamado a uma profunda reforma do pensamento sobre o sistema penal. É preciso perguntar: nossas prisões servem para restaurar a ordem e corrigir a alma, ou são meros depósitos de seres humanos onde a injustiça do crime é respondida com a injustiça do Estado?
A notícia da Folha é um espelho que reflete uma imagem feia de nossa sociedade. A filosofia de Santo Tomás de Aquino nos oferece não apenas a moldura para entender essa imagem, mas também os princípios para corrigi-la, restaurando a nobre e difícil busca pela verdadeira Justiça.
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