A Santa Igreja, em sua sabedoria milenar, nos convida a celebrar a Festa da Exaltação da Santa Cruz, um momento litúrgico de profunda riqueza teológica e espiritual. Longe de ser um mero lembrete de um instrumento de tortura, esta celebração é um hino à vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, a exaltação do estandarte da nossa salvação. Para mergulhar neste mistério, poucas luzes são tão seguras e penetrantes quanto a do Doutor Angélico, Santo Tomás de Aquino. É sob sua guia que podemos desvendar a sublime conexão entre o madeiro da Cruz e uma das mais enigmáticas passagens do Antigo Testamento: a serpente de bronze erguida por Moisés no deserto.
Para o olhar moderno, a associação entre a Cruz de Cristo e uma serpente pode soar estranha, até mesmo contraditória. Afinal, a serpente é o símbolo da tentação original no Éden, a personificação do engano que levou à Queda. Contudo, é precisamente nesta aparente contradição que a divina pedagogia se revela, e a filosofia realista de Santo Tomás nos ajuda a compreender a ordem e a finalidade por trás destes símbolos. O Aquinate, mestre em analisar as Escrituras à luz da razão e da fé, nos ensina a ver na serpente do deserto não um ídolo, mas uma prefiguração, uma imagem profética que preparou o povo de Israel – e toda a humanidade – para o mistério redentor da Crucificação.
O Veneno do Pecado e o Remédio que se lhe Assemelha
A narrativa, contida no livro dos Números (21, 4-9), é dramática. O povo de Israel, fatigado pela jornada no deserto, murmura contra Deus e contra Moisés. Como consequência de sua impaciência e falta de fé, o Senhor envia serpentes abrasadoras, cujas picadas venenosas levam muitos à morte. Arrependido, o povo clama por salvação. A resposta de Deus é, à primeira vista, paradoxal: Ele não elimina as serpentes, mas ordena a Moisés: “Faze para ti uma serpente abrasadora e põe-na por sinal; e acontecerá que todo aquele que for mordido e olhar para ela viverá”.
Santo Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica (III, q. 25, a. 4), analisa esta passagem com precisão filosófica. Ele explica que era conveniente que Cristo sofresse na Cruz, o instrumento de sua Paixão. Aprofundando a simbologia, ele recorre a este episódio do deserto para ilustrar o princípio da conveniência e da semelhança na obra da Redenção.
O Doutor Angélico argumenta que, assim como o povo foi ferido por serpentes, o remédio veio sob a forma de uma serpente. A serpente de bronze, embora tivesse a forma da serpente, não possuía seu veneno. Era uma imagem inofensiva daquilo que causava a morte. Esta é a chave da analogia tomista: a humanidade estava ferida pelo veneno do pecado, cuja porta de entrada foi a sugestão da serpente no Paraíso. O remédio, portanto, viria por meio de Alguém que assumiria a semelhança do pecador, sem, contudo, ter o veneno do pecado.
Cristo, na Cruz, assume a "forma do pecado". São Paulo, na Segunda Epístola aos Coríntios (5, 21), afirma que Deus "O fez pecado por nós, Aquele que não conheceu pecado". Santo Tomás explica que Cristo não se tornou um pecador, mas assumiu sobre si as penalidades do pecado – a dor, o sofrimento e a própria morte – para curar a nossa natureza decaída. Assim como a serpente de bronze era semelhante às serpentes que matavam, mas era, em si mesma, inofensiva e fonte de cura para quem a olhava com fé, Cristo se fez semelhante a nós em nossa fragilidade mortal, para nos curar da própria morte espiritual.
A Necessidade de "Olhar para Cima": A Fé e a Exaltação
Outro ponto crucial na análise tomista é o ato de "olhar" para a serpente erguida. Não bastava a existência do símbolo; era necessário um ato de fé e obediência por parte do israelita ferido. O remédio não era mágico. Exigia uma resposta humana: levantar os olhos para o sinal estabelecido por Deus.
Este ato de olhar para cima é uma prefiguração da fé em Cristo crucificado. A salvação não nos é imposta de forma mecânica. Requer a nossa conversão, o nosso "olhar" para Aquele que foi "exaltado". O próprio Cristo faz esta conexão de forma explícita no Evangelho de São João (3, 14-15): “E como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.
Para Santo Tomás, a "exaltação" da Cruz é dupla. Primeiramente, é uma exaltação física: Cristo é erguido do chão, entre o céu e a terra, como juiz e mediador. Mas, mais importante, é uma exaltação espiritual e gloriosa. O que parecia ser o ápice da humilhação e da derrota – a morte em um madeiro reservado aos piores criminosos – torna-se, na realidade, o trono de Sua realeza, o altar de Seu sacrifício perfeito e a cátedra de Sua mais sublime lição de amor e obediência.
A Cruz, portanto, deixa de ser um símbolo de vergonha para se tornar o estandarte da vitória. Ao ser exaltado nela, Cristo atrai todos a si (João 12, 32), não pela força, mas pela atração irresistível do amor divino manifestado. O olhar de fé para o Crucificado é o que nos cura do veneno do orgulho, da desobediência e do egoísmo, as verdadeiras causas da morte espiritual.
A Sabedoria Divina na Loucura da Cruz
A filosofia tomista, fundamentada na harmonia entre fé e razão, nos permite apreciar a profunda sabedoria divina que se esconde naquilo que o mundo considera "loucura". Para a mentalidade pagã, adorar um Deus crucificado era um escândalo e uma insensatez, como bem notou São Paulo (1 Coríntios 1, 23). No entanto, Santo Tomás nos mostra que a Cruz é a mais alta expressão da lógica e da justiça divinas.
Deus poderia ter salvo a humanidade de inúmeras maneiras. Contudo, Ele escolheu a Paixão e a Cruz por razões de suma conveniência, que manifestam de forma perfeita Seus atributos:
Manifestação do Amor: Na Cruz, vemos a medida do amor de Deus, que não poupou Seu próprio Filho para nos resgatar.
Exemplo de Virtude: Cristo na Cruz nos oferece o exemplo perfeito de obediência, humildade, paciência e caridade.
Satisfação da Justiça: O sacrifício de Cristo oferece a Deus uma reparação superabundante pela ofensa infinita do pecado.
Libertação da Escravidão: Pela Cruz, somos libertados não apenas da culpa, mas também da escravidão ao demônio, que nos mantinha cativos pelo medo da morte.
A serpente de bronze, erguida para curar uma aflição temporal – a morte física pelo veneno –, era uma pálida imagem da Cruz, que nos cura de uma aflição eterna: a morte espiritual e a separação de Deus.
Conclusão: Exaltar a Cruz em Nossas Vidas
Ao celebrar a Exaltação da Santa Cruz, somos convidados, pela inteligência luminosa de Santo Tomás de Aquino, a ir além da superfície. Somos chamados a ver no madeiro sagrado não apenas o sofrimento de Cristo, mas o triunfo de Deus. A conexão com a serpente do deserto nos ensina que o remédio para o nosso mal mais profundo vem de uma forma inesperada, assumindo a aparência de nossa própria fraqueza para nos conferir a força divina.
Exaltar a Cruz hoje significa, portanto, fixar o nosso olhar de fé em Cristo Crucificado, reconhecendo Nele a única fonte de cura para o veneno do pecado que ainda nos aflige. Significa abraçar as nossas próprias cruzes diárias, unindo-as ao sacrifício redentor de Cristo. Por fim, significa proclamar com a vida que, na aparente derrota da Sexta-feira Santa, floresceu a vitória eterna da Ressurreição, e que o estandarte do Rei não é de ouro ou de prata, mas é o madeiro santo no qual a Salvação do mundo foi suspensa.





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