Em um mundo saturado por manchetes sobre a vida pessoal de celebridades, como o recente caso envolvendo o jogador David Luiz, a discussão sobre a infidelidade conjugal muitas vezes se limita ao drama emocional e à exposição midiática. Contudo, para além do sofrimento e da quebra de confiança, existe uma dimensão mais profunda que nossa cultura moderna frequentemente ignora. O que diria um dos maiores intelectos da história da Igreja, Santo Tomás de Aquino, sobre o pecado do adultério? Longe de ser uma mera condenação moralista, a análise tomista revela o adultério como um ato profundamente irracional, uma desordem que atenta não apenas contra Deus, mas contra a própria estrutura da realidade. Convidamos você a mergulhar na mente do Doutor Angélico para compreender por que a fidelidade é, acima de tudo, um ato de suprema justiça e razão.
Para Além da Emoção: O Adultério como um Ato Contra a Razão
Para entender o pensamento de Tomás de Aquino, é preciso primeiro compreender um de seus conceitos fundamentais: a Lei Natural. Para o santo, Deus inscreveu no coração da criação uma ordem, uma finalidade para todas as coisas. A razão humana tem a capacidade de perceber essa ordem. Agir moralmente, portanto, é agir de acordo com a razão, em harmonia com a finalidade para a qual fomos criados.
O casamento e a sexualidade, dentro dessa visão, possuem uma finalidade clara e ordenada. Primariamente, visam a procriação e a educação dos filhos, garantindo a continuidade da espécie humana de forma estável e segura. Secundariamente, visam o bem dos próprios cônjuges, a ajuda mútua e a união fiel de suas vidas.
O adultério, nesse contexto, é visto como um ato intrinsecamente irracional. Ele toma o ato sexual, que tem uma finalidade nobre e ordenadora, e o desvia para fora do seu contexto próprio e justo. É usar um bem poderoso para um fim desordenado, separando seus aspectos unitivo e procriativo do compromisso que lhes dá sentido. Para Tomás, não se trata apenas de "ferir sentimentos"; trata-se de cometer uma profunda injustiça, uma violação da ordem natural das coisas.
A Injustiça em Múltiplas Frentes: A Quem o Adultério Ofende?
A análise tomista sobre o adultério é, em sua essência, uma análise sobre a justiça. O Doutor Angélico demonstraria que este pecado não é um ato privado, mas uma teia de injustiças que se espalha em várias direções.
A Injustiça Contra o Cônjuge
Este é o nível mais evidente. O matrimônio é um pacto, um contrato de doação mútua e exclusiva. Ao cometer adultério, a pessoa viola um juramento solene. Tomás veria isso não apenas como uma mentira, mas como uma forma de roubo. Rouba-se do cônjuge aquilo que lhe é devido por direito: a exclusividade do corpo, da intimidade e da fidelidade prometida. É uma quebra da fides, a confiança fundamental que sustenta o vínculo. A pessoa adúltera trata seu próprio corpo e o corpo de seu cônjuge como propriedades a serem usadas para o prazer momentâneo, e não como sinais de uma aliança sagrada.
A Injustiça Contra os Filhos
Para Tomás de Aquino, a estabilidade do lar é o ambiente essencial para a correta educação da prole. O adultério ataca diretamente essa estabilidade. Ele introduz a incerteza, a duplicidade e o escândalo no seio da família, que deveria ser o primeiro lugar de aprendizado da virtude e da segurança. Mais grave ainda, atenta contra o bem da criança ao potencialmente gerar filhos fora do leito conjugal, privando-os do direito de nascer e ser criados por seus pais unidos em um vínculo estável e reconhecido. A certeza da paternidade, fundamental para a ordem social, é posta em xeque, o que para Tomás era um gravíssimo desarranjo.
A Injustiça Contra a Sociedade
Seguindo a tradição de Aristóteles, Tomás de Aquino via a família como a célula fundamental da sociedade. Uma sociedade saudável é construída sobre famílias saudáveis. Quando o adultério se torna comum ou é tratado com leviandade, a própria noção de pacto, de fidelidade e de compromisso a longo prazo é erodida na cultura. Se os juramentos mais íntimos e solenes podem ser quebrados por conveniência ou paixão, que valor terão os outros contratos sociais? A desordem no microcosmo da família, para o Aquinate, inevitavelmente gera desordem no macrocosmo da cidade e da nação.
A Injustiça Contra Deus
Em última instância, toda a teologia moral tomista culmina em Deus. O pecado do adultério é uma ofensa contra Deus por múltiplas razões. Primeiro, viola Seu mandamento explícito ("Não cometerás adultério"). Segundo, profana o sacramento do matrimônio, que é um sinal visível da união de Cristo com a Igreja. Terceiro, e de forma mais filosófica, é um ato de preferir um bem criado e finito (o prazer momentâneo, a satisfação de uma paixão) ao Bem Infinito, que é Deus. É uma desobediência à Lei Eterna, a ordem sábia com que Deus governa o universo.
A Paixão Desordenada e a Vontade Fraca
Então, por que as pessoas cometem adultério, se é um ato tão contrário à razão e à justiça? Tomás não era ingênuo. Ele entendia perfeitamente a força das paixões humanas (o que hoje chamaríamos de emoções e desejos intensos).
Para ele, o ser humano é uma composição de corpo e alma, com diferentes "apetites" ou inclinações. Temos o apetite intelectual (a vontade, que busca o bem conhecido pela razão) e os apetites sensíveis (as paixões, que buscam o prazer e evitam a dor). O pecado acontece quando a vontade, que deveria seguir o ditame da razão, se deixa escravizar pela paixão.
No caso do adultério, a paixão da concupiscência (o desejo sexual desordenado) se apresenta de forma tão intensa que a razão, embora saiba que é errado, é ofuscada. A vontade, enfraquecida por maus hábitos ou falta de virtude, cede e escolhe o bem aparente e imediato (o prazer) em detrimento do bem real e duradouro (a fidelidade, a justiça, a salvação da alma). Não é que a paixão seja má em si mesma, mas ela se torna destrutiva quando não é governada e ordenada pela razão e pela fé.
Conclusão: A Relevância Eterna da Razão Tomista
As notícias vêm e vão, e as figuras públicas continuarão a falhar. O que permanece é a verdade sobre a natureza humana e a ordem moral. A perspectiva de Santo Tomás de Aquino sobre o adultério nos resgata de uma análise puramente sentimentalista e nos oferece um diagnóstico robusto e racional.
Ele nos ensina que a fidelidade matrimonial não é um ideal romântico e frágil, mas um pilar de justiça que sustenta o indivíduo, a família e a sociedade. O adultério, por sua vez, não é um simples "deslize", mas uma falha da razão, uma injustiça multifacetada e uma desordem que nos afasta de nossa finalidade última: a felicidade encontrada na união com Deus. A sabedoria de Aquino, com mais de 700 anos, continua a ser uma luz poderosa para iluminar a confusão moral de nossos tempos, lembrando-nos que os mandamentos de Deus não são imposições arbitrárias, mas o próprio manual de instruções para uma vida plena, justa e verdadeiramente humana.
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