A Divinização do Homem: A Theosis na Perspectiva de Santo Tomás de Aquino
A ideia de que o ser humano pode, de alguma forma, participar da vida divina e se tornar "semelhante a Deus" é uma das doutrinas mais profundas e, por vezes, controversas do cristianismo. Conhecida no Oriente cristão pelo termo grego theosis (θεωσις), ou divinização, essa concepção afirma que o destino final do homem não é apenas a salvação do pecado, mas uma união íntima e transformadora com o próprio Criador.
Mas como um pensador da magnitude de Santo Tomás de Aquino, o pilar da teologia escolástica ocidental, abordou esse conceito? Embora não utilize o termo theosis com a mesma frequência que os Padres da Igreja oriental, o Doutor Angélico desenvolveu uma das mais sofisticadas e cuidadosas visões sobre a união do homem com Deus. Em sua obra, essa jornada de divinização é apresentada como um caminho de graça, participação e, finalmente, a Visão Beatífica.
Neste artigo, exploraremos em profundidade como Santo Tomás de Aquino entende a deificação do homem, uma jornada que começa na Terra e se consuma na glória eterna.
A Graça Santificante: O Início da Divinização na Terra
Para Santo Tomás, a jornada de divinização não é algo que começa apenas após a morte. Ela tem seu início no momento em que a alma recebe a graça santificante. Este não é um mero perdão jurídico dos pecados; é um dom sobrenatural, uma qualidade real e infundida na alma que a eleva e a transforma intrinsecamente.
A graça é, nas palavras de Aquino, uma participatio quaedam naturae divinae – uma certa participação na natureza divina, ecoando a passagem bíblica de 2 Pedro 1:4. Veja como ele a concebe:
Uma Nova Natureza: A graça concede à alma uma nova "natureza" sobrenatural, curando as feridas do pecado e orientando o ser humano para seu fim último: Deus.
A Semente da Glória: Santo Tomás refere-se à graça como a "semente da glória" (semen gloriae). Isso significa que a vida de união com Deus na eternidade é o florescimento de uma semente que já foi plantada na alma aqui na Terra através do batismo e dos sacramentos. Não são duas vidas distintas, mas um contínuo crescimento.
Portanto, para o tomismo, estar "em estado de graça" já é estar em um estado inicial de deificação. É o começo da participação real na vida trinitária, uma elevação que a natureza humana, por si só, jamais poderia alcançar.
Participação (Participatio): A Chave do Pensamento Tomista
Para compreender a fundo a visão de Aquino, o conceito de participação (participatio) é absolutamente central. Em sua metafísica, tudo o que existe, participa do Ser (esse) que é Deus, o Ipsum Esse Subsistens (o Próprio Ser Subsistente). As criaturas não são Deus, mas "têm" ser por participação.
Ele aplica a mesma lógica à divinização:
A alma humana participa da vida divina pela graça, assim como o ferro em brasa participa das propriedades do fogo. O ferro se torna incandescente, quente e luminoso como o fogo, mas sua natureza continua sendo ferro, não fogo.
Essa analogia é perfeita para ilustrar o pensamento tomista. A união com Deus não destrói nem anula a natureza humana; ela a eleva e a aperfeiçoa ao máximo de sua potencialidade. Nós nos tornamos "deuses por participação", como afirmavam os Padres da Igreja, mas nunca Deus por natureza. A distinção ontológica entre Criador e criatura é sempre mantida de forma clara e inequívoca.
A Visão Beatífica: O Cume da União com Deus
Se a graça é a semente, a Visão Beatífica (Visio Beatifica) é a flor plenamente desabrochada. Este é o fim último para o qual todo ser humano foi criado. Trata-se do estado final dos salvos no céu, onde eles experimentarão a felicidade perfeita e definitiva através de uma união intelectual direta e imediata com a própria Essência Divina.
O que é a Visão Beatífica?
Não se trata de uma "visão" com os olhos físicos, mas de um ato do intelecto. O intelecto humano, cuja natureza é buscar a verdade, só encontra seu repouso final quando conhece a Causa Primeira de todas as coisas: Deus. Na Visão Beatífica, Deus se dá a conhecer à alma sem intermediários, sem imagens ou conceitos. A alma "vê" a essência de Deus, e nesse ato de conhecimento, encontra o amor e a felicidade supremos.
A Consumação da Theosis
Este é o ponto culminante da divinização. Ao conhecer a Deus "face a face", a alma é inundada pela luz e pelo amor divinos de uma forma tão intensa que ela é transformada à Sua semelhança. A participação na natureza divina, iniciada pela graça, atinge sua perfeição máxima. A alma não se dissolve em Deus, mas, mantendo sua identidade pessoal, participa da felicidade e da vida intratrinitária de uma maneira que excede toda a compreensão humana.
A Distinção Crucial: Participação vs. Fusão Metafísica
É vital reforçar um ponto para evitar mal-entendidos panteístas. A theosis tomista não é uma fusão onde a alma humana é absorvida pela divindade, perdendo sua individualidade. Santo Tomás de Aquino defende vigorosamente que a união com Deus aperfeiçoa a criatura, não a aniquila.
A glória de Deus, em sua visão, não está em apagar a criação, mas em elevá-la a um estado de perfeição que ela não poderia atingir por si mesma. A distinção entre a essência de Deus e a essência da alma permanece eternamente. Somos filhos no Filho, participantes por adoção, mas jamais o Deus Único por natureza.
Conclusão: Theosis Tomista, uma Jornada da Graça à Glória
Em suma, embora Santo Tomás de Aquino não use o vocabulário típico da theosis oriental, ele oferece uma das mais robustas e coerentes doutrinas sobre a divinização do homem. Para ele, este não é um conceito vago ou meramente metafórico, mas uma realidade concreta que se desenrola em três estágios claros:
Início na Graça: A alma é elevada pela graça santificante, tornando-se participante da natureza divina aqui na Terra.
Crescimento na Virtude: Através de uma vida de fé, caridade e prática das virtudes, essa participação se aprofunda.
Consumação na Glória: A jornada atinge seu ápice na Visão Beatífica, onde a união com Deus se torna completa, direta e eternamente feliz.
A visão tomista da divinização é, portanto, uma grande afirmação do potencial humano quando elevado pela graça. Ela nos lembra que o propósito da vida cristã vai além do simples cumprimento de regras; é uma real e transformadora jornada de retorno à nossa Fonte e Fim último, uma participação no amor, na verdade e na felicidade do Próprio Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário