quarta-feira, 8 de outubro de 2025

A Ira de Jonas e a Lição da Hera: O que Santo Tomás de Aquino nos Ensina sobre a Misericórdia Divina?

 

A cena é quase desconcertante em sua mesquinhez humana diante do drama cósmico que acabara de se desenrolar. O profeta Jonas, sentado a oriente de Nínive, lamenta-se com uma amargura que o leva a desejar a morte. O motivo? Não o genocídio evitado, não a conversão de cento e vinte mil almas, mas a perda de uma simples planta que lhe dava sombra. Este episódio, narrado no capítulo 4 do Livro de Jonas, revela o abismo entre a lógica humana e a divina. Para iluminar esta passagem, poucas mentes são tão adequadas quanto a de Santo Tomás de Aquino. Analisar a ira de Jonas e a lição da hera sob a ótica tomista é desvendar as raízes do nosso próprio coração e entender por que Santo Tomás de Aquino consideraria a misericórdia de Deus não uma contradição da justiça, mas a sua mais perfeita e transbordante manifestação.

A Anatomia da Ira de Jonas: Uma Paixão Desordenada

Para Santo Tomás, as paixões da alma — como o amor, o ódio, a alegria, a tristeza e a ira — não são intrinsecamente más. São movimentos da alma apetitiva em resposta a um bem ou a um mal percebido. O problema moral reside na sua ordem ou desordem. Uma paixão é ordenada quando governada pela razão e orientada para o verdadeiro bem; é desordenada quando se rebela contra a razão e se apega a um bem aparente ou inferior.

A ira de Jonas, na perspectiva tomista, é um caso clássico de uma paixão desordenada. Qual é o bem que Jonas percebe ter sido lesado, causando sua fúria? Superficialmente, é o seu conforto físico, a sombra da planta. Contudo, a raiz é mais profunda. Jonas sente sua autoridade profética e, quiçá, sua própria imagem de justiça, totalmente minadas. Ele anunciou a destruição, e Deus, em Sua misericórdia, perdoou. A ira de Jonas nasce de um orgulho ferido e de um amor-próprio que se sobrepõe ao amor a Deus e ao próximo.

Santo Tomás diria que Jonas cometeu um erro fundamental na hierarquia dos amores (ordo amoris). Ele amou mais a sua reputação e o seu conceito de justiça retributiva do que as almas dos ninivitas e, mais grave ainda, do que a própria vontade de Deus, que se deleita em perdoar. Sua ira não era um "zelo santo", mas uma tristeza egoísta pela salvação alheia, o que o Doutor Angélico classificaria como uma forma do vício da inveja ou da acídia. Ele se entristeceu com um bem espiritual imenso — a conversão de uma cidade inteira.

A Hera e o Bem Criado: O Erro de Aferrar-se ao Transitório

Deus, em sua pedagogia divina, utiliza a própria desordem de Jonas para instruí-lo. Ele faz nascer uma planta (identificada como hera, mamona ou aboboreira, dependendo da tradução) para lhe dar sombra, e Jonas "sentiu uma grande alegria por causa dela" (Jonas 4,6). Em seguida, Deus envia um verme que seca a planta, expondo o profeta ao sol e ao vento, reacendendo sua ira.

Aqui, Santo Tomás nos ensinaria sobre a natureza dos bens criados. Tudo o que existe é bom, pois participa do Ser e da bondade de Deus. A sombra da planta era um bem legítimo, um dom divino. O erro de Jonas não foi alegrar-se com ela, mas aferrar-se a ela com um amor desproporcional. Ele transformou um bem finito, transitório e instrumental em um fim em si mesmo. Sua alegria era excessiva, e sua tristeza pela perda, abissal.

Na Suma Teológica, Santo Tomás explica que a felicidade perfeita do homem não pode consistir em nenhum bem criado, mas unicamente em Deus. Jonas depositou uma porção indevida de sua felicidade em uma criatura efêmera. A lição de Deus é brutalmente clara: "Tiveste compaixão da planta, pela qual não trabalhaste, nem a fizeste crescer [...]; e não terei Eu compaixão da grande cidade de Nínive?" (Jonas 4,10-11). Deus contrapõe o apego de Jonas a um bem insignificante e passageiro à Sua própria solicitude por um bem imensurável e eterno: as almas imortais dos homens, criadas à Sua imagem e semelhança. (Se desejar aprofundar, pode ler mais sobre a visão de Santo Tomás acerca dos bens criados e o Fim Último do homem em nosso artigo sobre o tema).

"Não Terei Eu Compaixão de Nínive?": A Misericórdia como Plenitude da Justiça

O cerne da crise de Jonas é sua incapacidade de conciliar a justiça e a misericórdia de Deus. Para ele, a justiça exigia a destruição de Nínive, cidade de notória maldade. O perdão divino parecia um ato de fraqueza, uma violação da ordem justa.

Santo Tomás de Aquino resolve este aparente paradoxo de maneira magistral. Para ele, a misericórdia não anula a justiça, mas é a sua plenitude. A justiça consiste em dar a cada um o que é seu. Sendo Deus o Legislador Supremo e a vítima de toda ofensa (pois todo pecado é, em última instância, uma ofensa a Ele), a Ele pertence o direito de exigir a reparação ou de perdoar a dívida. Quando Deus perdoa, Ele não está sendo injusto; está exercendo uma prerrogativa de Sua infinita bondade.

Mais ainda, a misericórdia é, segundo o Aquinate, a maior das virtudes no que tange aos seus efeitos exteriores, pois manifesta de modo mais excelente a onipotência divina. É mais poderoso tirar alguém da miséria do pecado e da morte do que simplesmente puni-lo. A justiça divina, sem a misericórdia, seria incompreensível para nós. Como afirma Santo Tomás, "a obra da justiça divina sempre pressupõe a obra da misericórdia e nela se funda" (Suma Teológica, I, q. 21, a. 4). A própria Criação é um ato de misericórdia, pois Deus nos deu o ser sem que Lhe fôssemos devidos.

Jonas queria um deus que se conformasse à sua régua de justiça. Deus lhe revela que Sua essência é o Amor e que Sua justiça está perfeitamente ordenada à Sua misericórdia. (Analisamos com mais detalhes a harmonia entre Justiça e Misericórdia em Deus neste outro post).

O Verdadeiro Ofício do Profeta na Perspectiva Tomista

Por fim, o drama de Jonas ensina sobre a natureza da profecia. Jonas agiu como se sua palavra fosse um decreto fatalista e irrevogável. Ele se via como um arauto do destino, e não como um instrumento da salvação.

Para Santo Tomás, o dom da profecia é concedido para a edificação da Igreja e a salvação dos homens. Muitas vezes, especialmente no Antigo Testamento, as profecias de destruição são condicionais. Elas não são sentenças, mas advertências. O anúncio da punição é um remédio amargo oferecido pela misericórdia divina para evitar a própria punição. O sucesso da profecia de Jonas não estaria na destruição de Nínive, mas precisamente no que aconteceu: o arrependimento da cidade. A "falha" de sua previsão foi o seu maior triunfo ministerial, um triunfo que seu orgulho o impediu de celebrar.

Conclusão: A Hera em Nossos Próprios Corações

A lição que Deus ensina a Jonas através de uma planta seca ecoa através dos séculos até chegar a nós. Quantas vezes nos enfurecemos com a perda de nossas "heras" — confortos, planos frustrados, reputações manchadas, pequenas injustiças sofridas — enquanto permanecemos indiferentes à miséria espiritual e à salvação das almas ao nosso redor?

A análise tomista nos convida a examinar a ordem de nossos amores. Amamos mais nosso bem-estar que a vontade de Deus? Entristecemo-nos com o bem do próximo? Compreendemos que a misericórdia de Deus é o maior de Seus atributos, a força que sustenta o universo e a única esperança para nossa alma?

A história de Jonas é um chamado perene à conversão, não apenas para os pecadores de Nínive, mas para os "justos" como o próprio profeta. É um convite a arrancar de nosso coração o apego desordenado às criaturas e a nos alegrarmos não com as sombras passageiras, mas com a luz eterna da Misericórdia Divina, que sempre busca salvar, perdoar e dar vida em abundância.

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Tomista, dedico-me ao estudo da Filosofia, que pela luz natural da razão nos eleva ao conhecimento das primeiras causas, e da Teologia, a ciência sagrada que, iluminada pela Revelação, a aperfeiçoa e a ordena ao seu verdadeiro fim. Ambas as ciências são para mim os instrumentos para buscar a Verdade subsistente, que é Deus, o fim último para o qual o homem foi criado.

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