segunda-feira, 13 de outubro de 2025

A Estudante de Direito e o Abismo do Mal: O Que Santo Tomás Diria Sobre a “Serial Killer” de Guarulhos?

 

A notícia chocou o Brasil: uma estudante de Direito, Ana Paula Veloso Fernandes, é investigada como uma “serial killer”, suspeita de envenenar e matar ao menos quatro pessoas com uma frieza e planejamento desconcertantes. A mesma pessoa que deveria estudar as leis para defender a justiça é acusada de pervertê-las da forma mais radical, manipulando cenas de crime, forjando provas e, segundo a polícia, sentindo “prazer em matar”. Diante de um quadro tão sombrio, a mente moderna busca refúgio em categorias psicológicas como “psicopatia”. Contudo, para verdadeiramente perscrutar as profundezas deste abismo, é preciso uma filosofia mais robusta. O que Santo Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, diria sobre este caso? Sua análise nos oferece uma luz potente para entender a anatomia do mal e a trágica capacidade da liberdade humana.

A Vontade Desordenada: O Mal como Escolha Deliberada

Para Santo Tomás, todo ser humano é, por natureza, inclinado ao bem. Nossa inteligência busca a verdade e nossa vontade anseia pelo bem. Como, então, alguém pode escolher o mal tão radicalmente? A resposta tomista não está na ignorância, mas na desordem da vontade. Ana Paula não parece ser uma pessoa de intelecto debilitado; pelo contrário, suas ações, como a manipulação de provas para incriminar um ex-namorado ou a execução de um assassinato por encomenda, demonstram um uso agudo e calculista da razão.

O problema é que sua razão tornou-se uma serva de uma vontade corrompida. Em vez de a vontade seguir a razão que aponta para o bem verdadeiro — a vida, a justiça, a caridade —, a razão foi instrumentalizada para satisfazer os apetites desordenados da vontade: a cobiça pela casa de sua vítima, a vingança contra um ex-companheiro e, o mais terrível de tudo, o prazer na própria destruição. Santo Tomás explica que o mal não é escolhido por ser mal, mas sob a aparência de um bem particular e pervertido. Para a suspeita, a posse de uma casa ou a execução de uma vingança tornaram-se “bens” tão desejáveis que o bem maior — a vida do próximo — foi completamente desprezado. Trata-se de uma falha moral monumental, uma escolha deliberada de um bem finito e aparente em detrimento de um bem absoluto e verdadeiro. A liberdade humana, como nos ensina a filosofia tomista, é uma faca de dois gumes: pode nos elevar à santidade ou nos afundar na depravação.

A Perversão da Justiça e a Violação da Lei Natural

A faceta mais irônica e assustadora deste caso é a formação acadêmica da suspeita. Uma estudante de Direito, cujo dever seria compreender e aplicar a justiça, torna-se o agente da mais brutal injustiça. Para Santo Tomás, a lei humana (a lei positiva) só tem validade na medida em que se conforma à Lei Natural, que é a participação da criatura racional na Lei Eterna de Deus. O preceito mais fundamental da Lei Natural é: “o bem deve ser feito e buscado, e o mal, evitado”. Dele, decorre o mandamento “não matarás”.

As ações de Ana Paula não são apenas crimes perante o código penal brasileiro; são uma afronta direta e consciente à Lei Natural, que está inscrita no coração de cada ser humano. Ela não apenas viola a justiça comutativa (a justiça entre indivíduos, ao tirar vidas e bens que não lhe pertencem), mas também a justiça legal, ao minar a própria estrutura da ordem social com suas mentiras e manipulações. Ao ligar para a polícia para denunciar os crimes que ela mesma cometeu, ela zomba da busca pela verdade e transforma os instrumentos da justiça em peças de seu teatro macabro. Para um aprofundamento, é essencial revisitar o conceito de Lei Natural em Santo Tomás, pois é a base para compreender a objetividade do mal praticado.

O Hábito do Pecado: Quando a Crueldade se Torna uma Segunda Natureza

Um único assassinato é uma tragédia e um pecado mortal. Uma série de assassinatos, planejados e executados com crescente audácia, aponta para algo mais profundo: a instalação de um vício. Santo Tomás ensina que nossos atos repetidos formam hábitos (habitus), que podem ser virtudes (se nos inclinam para o bem) ou vícios (se nos inclinam para o mal). Um vício não é apenas uma fraqueza; é uma “segunda natureza” que torna a prática do mal mais fácil e, em casos extremos, até prazerosa.

A expressão usada pela polícia, de que ela “tem prazer em matar”, é teologicamente precisa. Descreve uma alma onde o vício da crueldade e da malícia se enraizou de tal forma que a vontade encontra deleite naquilo que é a privação do bem. A sequência de crimes — de matar para obter uma casa, para se vingar, por dinheiro e finalmente para “ajudar” uma amiga a matar o próprio pai — mostra uma escalada. O pecado, quando não combatido pelo arrependimento e pela graça, gera mais pecado, tornando o coração cada vez mais endurecido. Este caso é um retrato vívido da doutrina sobre os pecados capitais e os vícios que deles decorrem, mostrando como a soberba e a inveja podem florescer em atos de violência extrema.

Psicopatia ou Malícia? Uma Análise Tomista da Culpabilidade

A sociedade moderna, desconfortável com o conceito de mal moral, rapidamente aplica o rótulo de “psicopata”. Embora a psicologia possa descrever um padrão de comportamento (falta de empatia, manipulação, grandiosidade), a filosofia tomista insiste na questão da culpabilidade moral. Para Santo Tomás, a responsabilidade de um ato reside no uso da inteligência e da vontade. A menos que se prove uma total incapacidade de discernir o certo do errado ou uma completa anulação do livre-arbítrio, o agente é responsável por seus atos.

A complexidade dos planos de Ana Paula sugere que seu intelecto estava funcional, ainda que a serviço do mal. Portanto, de uma perspectiva tomista, não se pode simplesmente dissolver sua culpa em um diagnóstico. O termo mais adequado seria malícia. Pecar por malícia, para o Doutor Angélico, é o tipo mais grave de pecado, pois não nasce da fraqueza ou de uma paixão súbita, mas de uma escolha deliberada da vontade que se apega a um mal. A frieza, o cálculo e o prazer no ato são indicativos de uma vontade que conscientemente escolheu se afastar da ordem divina e da Lei Natural. É a manifestação pura e aterrorizante do mysterium iniquitatis — o mistério da iniquidade.

Conclusão: A Realidade do Mal e a Necessidade da Virtude

O caso da “serial killer de Guarulhos” é um espelho sombrio que nos força a encarar a realidade do pecado e a capacidade humana para o mal. A análise de Santo Tomás de Aquino nos arranca das explicações fáceis e nos confronta com a verdade da liberdade humana e da responsabilidade moral. Suas ações são a consequência lógica de uma vida onde a vontade se recusa a ser governada pela reta razão e pela lei de Deus. Este caso não demonstra a inexistência de Deus ou da ordem, mas sim a terrível realidade de sua rejeição. Para nós, fica a lição perene sobre a necessidade absoluta de cultivar as virtudes, de ordenar nossas paixões pela razão, de conformar nossa vontade à virtude da justiça e, acima de tudo, de reconhecer nossa dependência da graça divina para não cairmos em abismos semelhantes. Pois, sem a Verdade como guia e o Bem como fim, a inteligência mais brilhante pode se tornar a mais perigosa das armas.

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Tomista, dedico-me ao estudo da Filosofia, que pela luz natural da razão nos eleva ao conhecimento das primeiras causas, e da Teologia, a ciência sagrada que, iluminada pela Revelação, a aperfeiçoa e a ordena ao seu verdadeiro fim. Ambas as ciências são para mim os instrumentos para buscar a Verdade subsistente, que é Deus, o fim último para o qual o homem foi criado.

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